quarta-feira, 28 de outubro de 2009

CRÍTICA É A ARTE DE AMAR

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 20 DE ABRIL DE 2008

Há milhares de clichês sobre a atividade da crítica de cinema e muitos estereótipos sobre os indivíduos que a pratica. Há desde aqueles que pensam ser os críticos meros revoltados até outros tantos que vêem neles seres frustrados que, na impossibilidade de fazerem seus próprios filmes, simplesmente metem o bedelho no trabalho alheio.

"Crítico é o cara que gosta dos filmes que ninguém gosta", diz um. "Crítico é um panaca", diz outro. "Crítico é um nada", completa um terceiro. O mais engraçado de comentários desse tipo é que demonstram que as pessoas parecem conhecer ou ler muito pouco do que esses profissionais escrevem, tratando-os como se fosse uma só voz, ou como se fossem membros de uma gangue que atua num complô para acabar com o prazer do espectador com algum filme.

Crítica é uma atividade tão ingrata quanto qualquer outra profissão, assim como há os bons profissionais e existem os ruins. Não tem segredo nisso. Assim como há bons médicos, têm aqueles que fazem o estilo "açougueiro". Existem críticos que conseguem imprimir em seus escritos um método de trabalho, que passam ao leitor uma experiência de cinema, uma visão capaz de fazê-lo refletir sobre as coisas do mundo, mas também têm aqueles que ficam no ramerrame de comentários que nada dizem, como "oh, como a fotografia do filme X é linda, como tal ator atua bem no filme Y".

Como bem metaforizou certa vez Inácio Araujo, crítico de cinema é um pouco como um juiz de futebol. Se um juiz é o mediador em uma partida de futebol, o crítico de cinema é o árbitro na recepção de um filme, pois ele é o responsável por fazer a ponte entre um filme e o espectador. Assim como um torcedor fica puto da vida quando um juiz assinala um pênalti contra a sua equipe, um crítico de cinema só é bacana até o momento em que não fala mal de um filme adorado por algum leitor.

O papo de desdenhar da atividade crítica por supostamente ser uma atividade relegada aos artistas frustrados também é conversa fiada. "Faz-se crítica quando não se pode fazer arte, do mesmo modo que se é alcagüete quando não se pode ser policial", anotou acertadamente o escritor Gustave Flaubert. Um alcagüete auxilia o trabalho policial sem realmente fazê-lo, com crítica é a mesma coisa, "os melhores críticos são os que efetivamente contribuem para melhorar a arte que criticam", complementa Ezra Pound.

Acredito que os melhores críticos não são aqueles que têm na ponta da língua o nome de um ator quando se precisa saber dele, nem o cara que sabe de cor todos os ganhadores do Oscar. Bom crítico também não é o profissional que dá notas para os filmes como se avaliasse alguma escola de samba em tempos de carnaval. Crítico respeitável não é o que diz pro leitor qual filme ir assistir ou qual deixar de lado, nada disso.

O crítico que pode realmente contribuir para melhorar a arte que critica é simplesmente aquele que trata o leitor como igual, que respeita a sua inteligência e sensibilidade, o homem que, como afirmou o francês André Bazin, "ao invés de trazer uma verdade inexistente numa bandeja de prata, prolonga o máximo possível o impacto da obra de arte".

“Crítica de cinema é a arte de amar”, afirmou Jean Douchet, o “Sócrates da atividade”, segundo Louis Skorecki. A frase dele diz muito sobre a profissão como nenhuma outra, começando que ela descarta a prática como uma atividade de indivíduos odiosos e também ignora a idéia de que os críticos são seres que deixam de experimentar os filmes para lê-los, tendo uma visão extremamente racional, como a de um médico legista que disseca um cadáver.

Eu penso que uma crítica não deve nunca ser escrita como uma visão de cima pra baixo da obra, devendo assim obedecer à intenção de proteger a verdade e o sentido internos de uma obra contra todo e qualquer historicismo, biografismo e psicologismo.

Como Jacques Derrida, acredito que a grande virtude de um crítico está em reconhecer a força da obra, a força do gênio que a cria. Assim, o trabalho do crítico é o de fazer com que a potência do artista resida no texto.

Se crítica é a arte de amar, de prolongar o impacto de uma obra, creio que ela deve ser escrita um pouco como uma carta de amor e, se possível, ir além: tornar-se um testamento, um manifesto político, uma declaração de guerra.

Um crítico luta por convicções semelhantes às que o cineasta português Pedro Costa persegue com os seus filmes, a de “nunca lutar contra o capital, contra a barbárie, contra o país”, nada disso, mas lutar por alguma coisa, “pela memória, pela justiça, pelo amor”.

É claro que a atividade crítica anda desprestigiada, mas o bom cinema também está desacreditado. A verdade é que o público não anda muito interessado nos filmes que vão além do passatempo, aí fica realmente difícil a reflexão competir com a indução, a inquietação confrontar a conformidade, a crítica de cinema se sobressair à publicidade.

CHARLTON HESTON É IMORTAL

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 13 DE ABRIL DE 2008


Poucos dias após a morte do ator Richard Widmark, foi a vez de Charlton Heston se retirar de cena. Widmark foi o ator das sombras, ou seja, com o seu riso descontrolado personificou a ambigüidade, a instabilidade e a desconfiança nas telas do cinema. Após derrubar uma senhora das escadas, nunca sabíamos se ele ria por ser realmente um escroto ou se o riso era trágico, significava desespero.

Heston representou o oposto de Widmark. Ele não fazia nos filmes o tipo “cinzento”, indecifrável e misterioso. Heston sempre foi transparente. “Acredito que em algum lugar deve haver algo melhor que o homem”, dizia o explorador espacial, seu personagem na ficção-científica “O Planeta dos Macacos”.

Heston foi algo muito além de um simples homem. Heston foi Ben-Hur, o indômito judeu que conduziu seu povo a se rebelar contra os conquistadores romanos no filme homônimo de 1959. Foi também El Cid, o comandante da resistência espanhola contra os invasores mouros, no filme com o mesmo nome do herói, de 1961.

Incorporou, ainda, Moisés, aquele que conduziu os escravos a se libertarem do reino tirano do Egito, na refilmagem do épico “Os Dez Mandamentos”, realizado por Cecil B. DeMille em 1956, e pintou a Capela Sistina, como Michelangelo, em meio a diferenças artísticas com o Papa da Igreja Católica, no filme “Agonia e Êxtase”, de 1965.


Até quando fez um reles policial mexicano no filme “A Marca da Maldade”, dirigido por Orson Welles em 1958, ele não era só mais um homem entre tantos outros, mas um ser superior em sua integridade profissional que o destacava da corrupção do meio ao qual se inseria.

Charlton Heston foi mais do que um herói do cinema, mais do que um ator de épicos. Um ator épico! Não era ele tão grandioso quanto os filmes que realizou, mas eram os filmes que deveriam estar à sua altura. Heston era um ator “larger than life and screen” (maior que a vida e a tela).

Recentemente, muita coisa foi mostrada ou falada na tentativa de macular sua imagem do cinema, como revelar sua defesa em causas tão estúpidas quanto às do partido republicano do presidente George W. Bush - a guerra no Iraque - ou do direito do cidadão norte-americano em portar armas - o ator foi, inclusive, presidente da “Associação Nacional do Rifle”.

Porém, esses mesmos que acusam o ator “disso e daquilo”, como o covarde vigarista Michael Moore, diretor do filme “Tiros em Columbine”, no qual mostrava Charlton Heston como um senil senhor defensor de uma causa tão nefasta quanto das armas, se esquecem que, quando jovem, Heston arrastava seus papéis heróicos para fora da tela:

Carregou a faixa “Todos os homens nascem iguais” ao lado de Martin Luther King na Marcha pelos Direitos Civis nos anos 60 e esteve ao lado do prodígio e obstinado Orson Welles quando o estúdio queria montar o filme “A Marca da Maldade” à revelia do diretor.


John Charles Carter, o homem Charlton Heston, porém, não me interessa tanto. Sua imagem, sua presença no cinema é tão imaculada quanto à de um santo. Podem dizer que era um ator de pouco repertório, que só fez papéis bíblicos, épicos, etc.

A verdade é uma só. Heston nunca pareceu se esforçar muito para interpretar tais papéis porque, de certo, ele realmente era aquele ser ideal, “melhor do que o homem”, um ser tão grandioso e monumental quanto os filmes que fazia sob a direção do DeMille. Um aristocrata do cinema, enfim.

John Charles Carter morreu, mas Charlton Heston é imortal. Quando recebi a notícia de sua morte, por exemplo, estava revendo “O Planeta dos Macacos”. E, por lá, ele ainda está bem vivo, a repetir frases do tipo: “tire suas patas imundas de mim, seu macaco sujo!”. Sempre, um nobre.

terça-feira, 24 de março de 2009

AFINAL, QUEM FAZ OS FILMES

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 06 DE ABRIL DE 2008


“Quem faz os filmes são os diretores de cinema”, diz o diretor Howard Hawks para o pupilo Peter Bogdanovich. “Afinal, são eles que contam a história e, para isso, devem ter seus próprios meios para contá-la”, complementa. O depoimento do cineasta norte-americano é um raciocínio autorista, que credita ao diretor a condição de autor na feitura de um filme.

As palavras de Hawks estão coletadas no livro “Afinal, quem faz os filmes”, obra editada por Peter Bogdanovich que pode ser considerado um dos melhores títulos lançados no Brasil a respeito da importância do diretor de cinema na realização de um filme.

O livro é o resultado das longas entrevistas que Peter Bogdanovich fez com os velhos mestres do cinema, entre as décadas de 60 e 70, no intuito de tirar deles algumas lições sobre o ofício que o jovem autor queria seguir - caminho iniciado em 1968 quando realizou o filme “Na Mira da Morte”.


“Se você quer fazer algo, siga, observe e questione os melhores profissionais do ramo”, dizia o pai Bogdanovich ao seu filho Peter. O bom filho seguiu os ensinamentos do pai e foi assim que deixou Nova York, onde trabalhava como programador de mostras de filmes para o Museu de Arte Moderna e agitador cinematográfico, para viver na Califórnia, em meio aos artistas de Hollywood.

Bogdanovich cresceu vendo filmes dos velhos mestres da indústria norte-americana: os faroestes de John Ford, as comédias de George Cukor, as aventuras de Raoul Walsh, as animações da turma do Pernalonga elaboradas por Chuck Jones, os filmes de Jerry Lewis dirigidos por Frank Tashlin, os filmes baratos de Joseph Lewis e Don Siegel, obras dos estrangeiros que ajudaram a solidificar a cinematografia do país, como os filmes de Otto Preminger, Alfred Hitchcock, Fritz Lang, etc.

Com essa paixão pelo cinema do passado, Bogdanovich trafegava contra a maré que tomava conta da década de 60, época no qual se valorizava muito mais as novas tendências do cinema do que os estilos de velhos cineastas - John Ford era gagá, enquanto Federico Fellini era o máximo.


O jovem promissor se incomodava com o tratamento dado aos mestres. Incomodou-se ao ponto de não só procurar muitos deles para saber como eles pensavam seu ofício (seguindo os conselhos do pai), como também os procurou para divulgar seus ensinamentos por meio de retrospectivas de seus filmes no Museu, na escrita de artigos para revistas especializadas ou através de programas televisivos inteiros dedicados a eles.

Com suas iniciativas, Bogdanovich conseguiu entrevistar Orson Welles para uma retrospectiva. Seu bom relacionamento com o realizador de “Cidadão Kane” ainda lhe rendeu um livro escrito junto com o cineasta, intitulado “Este é Orson Welles” (atualmente fora de catálogo no Brasil).

Daí em diante, o jovem passou a acompanhar as filmagens de muitos desses cineastas, a entrevistá-los e, no fim, tornar-se um amigo deles. John Ford e Howard Hawks foram dois dos artistas que Bogdanovich manteve um estreito relacionamento, ambos costumavam brincar com a mania do jovem em fazer “todas aquelas milhares de perguntas malditas”, mas os dois também se orgulharam quando Peter mostrou que aprendera algo com eles quando fez seus próprios filmes - entre eles o festejado “A Última Sessão de Cinema”.


“Afinal, quem faz os filmes” é um livro no qual Bogdanovich compartilha com o leitor um pouco do que aprendeu com esses senhores.

Há um pouco de tudo na obra, desde anedotas engraçadas - como a história contada por Raoul Walsh da vez em que roubou o corpo do ator John Barrymore na funerária e o colocou sentado no sofá do também ator Errol Flynn para pregar-lhe uma peça quando este chegasse bêbado em casa - até lições de cinema - Hawks ao comentar a importância de sempre cortar de uma imagem para outra quando houver algum movimento ou ação - e reflexões sobre a arte - Hitchcock ao analisar as metáforas sexuais de muitas de suas cenas.

O livro é um calhamaço de quase mil páginas, mas é também uma viagem pelos primórdios do cinema norte-americano, pelas mentes de alguns dos maiores gênios da arte, enfim, é uma leitura essencial para todos aqueles que se interessam em saber um pouco mais sobre aqueles que fizeram e que fazem os filmes.

segunda-feira, 9 de março de 2009

DILLON SEGUE ROURKE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 30 DE MARÇO DE 2008


Os caminhos dos atores Matt Dillon e Mickey Rourke se cruzaram uma única vez, quando ambos integraram o elenco do filme “O Selvagem da Motocicleta”, dirigido por Francis Ford Coppola, em 1983. Naquele filme, Dillon interpretou o irmão mais novo e o maior admirador de Rourke (o selvagem do título), reconhecido pela sua fama de rebelde na pequena cidade em que viviam.

Os anos se passaram. Rourke de ídolo juvenil se transformou em fracassado quando deixou o cinema pelo boxe. Dillon seguiu caminho similar, foi uma das promessas dos anos 80 que não se concretizou, não teve uma sólida ou gloriosa carreira como Sean Penn.

Se o destino não se encarregou de promover o reencontro entre os dois atores - Abel Ferrara queria, inicialmente, Matt Dillon e Rourke para os papéis de Matthew Modine e Dennis Hopper no filme “Blackout” -, ao menos a história de admiração dos irmãos daquele filme de 1983 foi repetida quando Matt Dillon topou atuar no papel de Henry Chinaski no filme “Factotum”, dirigido pelo norueguês Bent Hamer.


A história se repete porque assim como, em “O Selvagem da Motocicleta”, Rusty James queria seguir os passos do irmão, Motorcycle Boy, Matt Dillon acabou por interpretar o personagem que Rourke havia habilmente encarnado no filme “Barfly”, de 1987, uma espécie de cinebiografia do escritor Charles Bukowski, criador de Henry Chinaski.

“Factotum” é claramente um filme de ator. Assim como o diretor Barbet Schroeder tinha confiado “Barfly” nas mãos de Mickey Rourke, Bent Hamer entrega seu filme para que Matt Dillon faça o show, com o auxílio de um impecável elenco de apoio (que inclui a queridinha do cinema independente americano Lili Taylor e Marisa Tomei).

Hamer estrutura o filme de um modo a acompanhar os passos descompassados de Hank Chinaski por ruas, bares, empregos, corridas de cavalo, apartamentos. Ao optar por não definir um período a ser seguido na vida do personagem, o cineasta faz como Bukowski fazia na escrita: simplesmente coloca os homens e as mulheres para viver a vida, por mais dura que seja.


Aparentemente o filme é um amontoado de trivialidades da vida de um escritor miserável. Anedotas da vida de um homem que passa seus dias a roubar cigarros em carros estacionados ou a trocar um trabalho por outro em questão de horas. Para não perder o foco, o cineasta recorre à narração em off (que utiliza trechos de poemas e contos de Bukowski), que mostra o olhar desencantado do personagem-escritor sobre a vida, sua dedicação à escrita e o amor por mulheres tão miseráveis quanto ele. Hamer consegue dar conta do recado.

Matt Dillon brilha opacamente em seu silêncio, com sua fala arrastada ou seus gestos entorpecidos - por vinho, whisky ou qualquer outra bebida etílica que seu personagem consome. Despido de qualquer pompa que geralmente atinge artistas que anseiam por interpretar homens “excêntricos” em sua miserabilidade, Dillon faz de Chinaski uma figura descompassada do restante da multidão que atravessa o filme, como antes fizera Rourke atuar como uma espécie de zumbi em “Barfly”.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

NÃO ESTOU LÁ

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 23 DE MARÇO DE 2008


Bob Dylan cá esteve, no Brasil, a trazer sua turnê há poucos dias. Não mais aqui está, mas está lá, na tela do cinema de meia dúzia de salas do país com o filme “Não estou lá”, de Todd Haynes, obra finalmente lançada comercialmente por aqui.

Mas será que Bob Dylan, o cantor e compositor, está realmente no filme? O artista pode não estar lá, mas por entre as cenas caminham muitas de suas músicas, sua obra, sua arte, enfim, sua alma.

A presença de Bob Dylan dá lugar para que seis outros corpos dêem vida a alguns de seus passos, materializando trechos de sua própria trajetória e também as letras de suas músicas, além de tornar reais tantos outros pares de lendas referidas à sua persona.

Entre os atores que dão corpo aos “avatares” do cantor, está o galã Richard Gere, o recém-falecido Heath Ledger, passando por uma mulher, a atriz Cate Blanchett, e um menino negro, Marcus Carl Franklin.


Em tempos de “crise da ficção”, como diz Inácio Araújo, no qual a criação é tratada como mentira e em que histórias descompromissadas com a toda e qualquer “história oficial” são substituídas por relatos solenes, nobres e graves, resultando em milhares de obras sempre “baseadas em história real”, “Não Estou Lá” deixa claro, logo de cara em seus créditos iniciais, que o filme não conta a história da vida do artista, mas sim que se inspira nas “muitas vidas e músicas de Bob Dylan”.

A obra é um desses filmes óvnis que chegam, arrebatam e escapam de toda e qualquer tola definição e o diretor Todd Haynes, antes o jovem promissor realizador de “A Salvo” e “Velvet Goldmine” - que já era um misto de documentário e ficção sobre artistas do glam-rock -, enfim se firma como um dos grandes artistas do cinematógrafo.

“Não estou lá” é obra de grande artista. Não uma biografia tradicional como as que costumam pulular por aí, nada de história ao melhor estilo Charles Dickens de “nasci, cresci, vivi e morri”. Ao contrário.


O filme pode decepcionar aqueles que esperam dele algo similar às obras sobre Johnny Cash ou sobre a banda The Doors, porque Haynes nem faz da vida de Dylan um romance açucarado e meloso como James Mangold fez no seu “Johnny e June” nem transforma o compositor em álibi para qualquer teoria da conspiração ou obra pseudo-politizada, como é o caso do “The Doors”, dirigido por Oliver Stone.

A falta de tais precariedades não significa dizer se tratar “Não estou lá” de uma obra incompreensível ou muito genérica sobre o artista inspirador. Mesmo o filme não narrando passo a passo da vida de Dylan, a obra é imbuída do espírito do compósito, vampirizando-o.

Não é um filme sobre Dylan, mas um verdadeiro manifesto do que ele representou e representa. Se o artista sempre buscou escapar de rótulos como “embaixador da música folk” ou “compositor engajado”, o filme escapa das taxações fazendo com que o personagem escape de história para história, de um corpo para outro.


“Uma música é uma coisa que anda por si só”, diz um dos seis personagens no início do filme. O que ele quer dizer é que uma música é viva, independe de rótulos que queiramos estabelecer para ela. O longa-metragem funciona sob o mesmo raciocínio porque ele não quer “explicar” o artista ou sua obra, mas sim estar com ele aonde quer que ele esteja - seja em um cenário de faroeste ou numa boate modernosa, seja em preto e branco ou colorido.

Creio que uma boa definição para o filme é que ele funciona um pouco como seria uma versão de qualquer conto de Jorge Luís Borges caso ele fosse transcrito por Marshall McLuhan.

De Borges, o filme arranca a estrutura labiríntica, dos labirintos de personagens que se multiplicam e se transmutam. Na vida real, por exemplo, Dylan interpretou quando jovem um vaqueiro no faroeste “Pat Garrett e Billy the Kid”, porém, em “Não Estou lá”, nessa passagem de sua vida, ele encarna ninguém menos que o próprio Billy the Kid, não mais um vaqueiro anônimo.


De McLuhan, o filme nutre a esperança de que a cultura de massas pode ser um veneno positivo e resultar em algo bom. É o que se expressa no início do filme, numa cena onde o corpo morto de um dos Dylan é aberto para que se faça a autopsia e a narração diz ser “necessário espalhar a doença de sua música”.

“Não estou lá” é um filme empolgante de ficção aos moldes de “Os Reis do Iê-Iê-Iê” e “Help”, ambos estrelados pelos “The Beatles” e dirigidos por Richard Lester, mas é também uma obra política, similar ao “One plus One”, filme que Godard fez com os Rolling Stones nos bastidores da gravação do álbum Beggar’s Banquet, obra que credita à arte um poder de resistência a qualquer verdade pré-estabelecida.

O filme é esse antídoto para a crise da ficção, a doença que conclama as “muitas vidas e músicas de Bob Dylan” para nos salvar. Com ele, há como única certeza de que ela, na verdade, nos falta. Em “Não Estou lá” o real é farsa, o relato é lúdico. Enfim, filme sem reles definições, ou seja, um grande filme.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

JOHN RAMBO - O LEOPARDO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 16 DE MARÇO DE 2008


“Rambo IV” é um desses filmes que nos pegamos imaginando como seria a reação das pessoas presentes na sessão após a exibição. Cada indivíduo vê um filme de determinada maneira, de acordo com sua própria visão de mundo. Assim sendo, como é possível ver o último filme dirigido por Sylvester Stallone?

Certamente um estudante de sociologia diria ser o filme nada além de uma porcaria imperialista advinda da indústria cultural hollywoodiana, enquanto para o entusiasta de filosofia as frases proferidas pelo veterano do Vietnã encontrariam parentesco no existencialismo sartriano ("viver de nada ou morrer por algo", diz Rambo, numa expressão que poderia estar inserida no livro "A Náusea").

Para um esquerdista, deve ser o filme nada além de reacionário. Para um direitista, restaria declarar sua própria inocência perante as acusações.

Eu, que sou apenas um cara que gosta de filmes, posso expor algumas coisas. A primeira é que não existe nada melhor do que ir num cinema com uma decoração evocativa de outros tempos, como é o caso do cine 3 do Araçatuba Shopping com suas paredes vermelhas que remetem às cortinas que cobriam as telas de velhos cinemas, e ver um filme tão fora de moda quanto "Rambo IV".


Outro aspecto a se pensar é que, na verdade, há dois filmes neste exemplar: tem o belo e decadentista canto de cisne de um herói de guerra e o outro é o menos interessante, e também o filme que menos se nota na tela, que é uma obra esquemática apoiada na estrutura iniciada no filme-retorno “Rocky Balboa”.

No filme esquema, tem-se um famoso herói que decide viver no anonimato para só retornar ao seu trabalho para salvar uma garota idealista após, é claro, exorcizar suas memórias em uma seqüência de flash-backs - como em “Rocky Balboa”, no qual o personagem relembrava cenas de seus outros filmes no meio de uma luta.

O outro “Rambo IV” é bem melhor, uma verdadeira experiência de regresso a um estágio primitivo de apreensão cinematográfica. Este é o filme de um autor, mas não de um autor-diretor tradicional, nada disso. Stallone é o diretor, mas o que o trabalho de direção parece respeitar mesmo é a presença do autor-ator Stallone.

A história de John Rambo é a de um boina-verde que foi treinado para matar. A história de Stallone é de um brutamonte que foi treinado para bater, matar, enfim, atuar nos filmes de ação de baixa categoria.


Rambo é possivelmente o último herói politicamente incorreto da história do cinema. É daqueles que matam não por uma ideologia ou por qualquer outra desculpa esfarrapada, pois Rambo não mata para defender uma idéia, pois acredita na frase: “matar um homem para defender uma idéia não significa defender uma idéia, mas simplesmente matar um homem”.

Stallone, por sua vez, é provavelmente o último herói de ação movido exclusivamente por sua destreza física, por sua presença corpulenta diante às câmeras. Nada de utilizar métodos de atuação seguindo Marlon Brando, muito menos atuar como se estivesse no teatro - nem o distanciamento bretchiano nem o barroquismo shakespeariano -, Stallone é um corpo a violentar o enquadramento.

O terreno do filme "Rambo IV" é então o de regresso ao cinema em seu estágio mesozóico. Não há imagens bonitas no filme, nada de cinema de poesia, nem mesmo de prosa, Stallone parece compreender o instrumento da câmera apenas como uma metralhadora a ser girada de um lado a outro no intuito de atingir o inimigo, que no caso é o espectador. Se o ator Stallone violenta o enquadramento, o diretor Stallone violenta o cinema. E isso é bom.


O que reforça a sensação de estarmos diante de um filme do tempo do onça é a forma brutal como Stallone conduz seu filme. A guerra é encenada de uma maneira tão aparvalhada quanto qualquer esquete de uma daquelas comédias mudas nos quais os personagens tinham seus movimentos capturados pela câmera em velocidade acelerada. Há milhares de seqüências de imagens aceleradas no filme e cada uma delas reforça a impossibilidade de reter (compreender?) o horror de um campo de batalha.

“Matar um homem é um negócio infernal”, dizia o personagem de Clint Eastwood no faroeste “Os Imperdoáveis” com uma calmaria aterradora em sua voz. Essa é uma idéia seguida por Stallone. Nada de compreender a guerra, suas implicações filosóficas ou políticas, porque uma guerra, como diria o crítico Michel Mourlet, “não é inevitável, mas como é feita por homens ela é uma atividade normal, cotidiana, como beber, comer ou ter filhos”.

Eu diria, ainda, que o filme dirigido pelo brutamonte Stallone é o que mais se aproxima de ser uma releitura do suntuoso épico que o aristocrata italiano Luchino Visconti dirigiu sob o título "O Leopardo".


Enquanto no épico passado em meio ao período da unificação italiana é narrada a história da decadência da nobreza pelos olhos de um dos seus membros, o príncipe da Sicília, em "Rambo IV" há o declínio de outro tipo de aristocrata, um fidalgo da guerra chamado John Rambo, homem feito para guerrear em tempos de “um antimilitarismo tão insano quanto o militarismo” (Mourlet).

No filme, todos à sua volta passam a dizer que o mundo tem que mudar, que as coisas estão mudando, igual na música de Bob Dylan ("Times, they're a changing..."). Como para o príncipe da Sicília, Rambo, o nosso aristocrata do front, vê que nada muda no mundo, pois “as coisas têm que mudar simplesmente para continuarem as mesmas”.

O caminho de John Rambo é como o do príncipe, o de fazer do seu percurso o crepúsculo de uma era. Aqui é o fim de um herói de guerra, aquele que “se recusa a morrer, que faz de sua dor física uma dessas caminhadas épicas à simplicidade”. Em suma, a retomada da luta do homem contra o mundo.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

EVANGELHO SEGUNDO ABEL FERRARA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 09 DE MARÇO DE 2008


Não há temas acabados para Abel Ferrara. Como todo gênio, o cineasta insiste a cada filme em abordar uma velha questão: a paixão que move os homens, a mesma que faz com que eles movam mundos.

A obra desse diretor nova-iorquino parece se renovar de forma impressionante. Ele deixa becos sujos de mafiosos e policiais, dos filmes “O Rei de Nova York” e “Vício Frenético”, com a mesma facilidade que adentra no asséptico mundo, de bares e hotéis, dos espiões e celebridades, de “Enigma do Poder” e “Blackout”.

Pouco importa em qual cenário ocorre à ação, a crença em cada um desses filmes é uma só. Como um bom cineasta de inclinação católica, Ferrara acredita que todo homem está condenado pelos seus pecados e condenado estando, ruma para encontrar a luz, a redenção no fim do túnel do sofrimento humano.


Porém, os personagens de Abel Ferrara estão sempre hesitantes entre serem pequenos messias, lutando por alguma reforma espiritual e coletiva, ou se portarem como Faustos assombrados pela proposta diabólica de qualquer Mefistófeles.

Ferrara é o pastor do cinema, mas uma espécie de litúrgico do caos. Ele crê na imagem cinematográfica, mas nutre desconfiança por ela. É um impasse análogo à dúvida católica: como acreditar em algo em que não vemos? Será que nos resta apenas acreditar cegamente ou há algum tipo de prova que algo existe além de nós, que uma força espiritual nos move?

A cena inicial de “Maria” revela algo: a atriz que interpreta Maria Madalena no filme dentro do filme faz a sua cena, adentrando no sepulcro onde Cristo foi inumado. Ela exalta-se quando percebe que o corpo dele não mais está lá. Maria está à sombra da dúvida.

Na dúvida também está o espectador de início, quando a escuridão toma conta da tela da obra que se inicia, com a pedra que tampa o sepulcro e impossibilita o espectador de enxergar qualquer coisa.

Porém, a pedra é movida aos poucos, do mesmo modo como no cinema o diafragma se abre para a película se expor à luz. A luz que nos conduzirá para a salvação, diz Ferrara, é a mesma luz que ilumina a cena onde Maria Madalena finalmente encontrará Jesus Cristo ressuscitado.


A luz pode nos iluminar e também nos cegar. É o tipo de jogo duplo que percorre as três histórias que andam paralelas na narrativa do filme, estrutura estilhaçada que induz o espectador a adentrar de cabeça nesse mundo repleto de contrastes.

Há no filme a história da atriz que, após interpretar Maria Madalena, decide retraçar o caminho percorrido por sua personagem em Jerusalém, no intuito de encontrar um preenchimento para sua vida.

Do outro lado, os percalços do cineasta que tenta lançar um controverso filme sobre Cristo e também o drama de um apresentador que debate a fé em seu programa televisivo.

Os três buscam menos que uma redenção do que uma revelação. Uma verdade que apareça em meio à peregrinação que o apresentador faz pelas largas e iluminadas ruas de Nova York, cidade com seus gigantescos prédios que é filmada como monumento religioso, ou no momento em que o cineasta se isola na sala de projeção do cinema a exibir o seu filme ou, ainda, quando a atriz se junta a uma família em Jerusalém para participar de um ritualístico jantar.

A verdade é ameaçada, incitada por esse Mefistófeles contido na consciência de cada personagem, quando a fé do questionador apresentador é posta à prova no instante que seu filho adoece, mas também durante o pacífico jantar em Jerusalém não se concretiza por causa da explosão de uma bomba e, ainda, quando a pré-estréia do filme sobre Cristo é interditada após uma ameaça de fieis fundamentalistas.


A fé pode revelar, mas também destruir. Aí que adentramos no cenário habitual de Abel Ferrara, que mostra a paixão com que a atriz refaz o caminho de sua personagem ao mesmo tempo em que exibe as barbáries que a acompanha, assim como mostrava as boas ações que o traficante Christopher Walken realizava em sua comunidade, em “O Rei de Nova York”, ao passo que revelava também sua brutalidade no trato de seus negócios.

O sagrado e o profano andam lado a lado no cinema de Ferrara. Em “Blackout” havia a película se fundindo ao vídeo, já em “Maria” o cinema habita o mesmo terreno pantanoso da fé ao lado da televisão. Em “Maria”, como acontecia já no filme “Olhos de Serpente”, a arte e a vida andam juntas no mesmo instante que a vida parece refazer cada passo ensaiado no cinema, ou seja, imitar a arte. O profano, às vezes, torna-se sagrado.

Não há muitas conclusões a se tirar de “Maria”. Não é um filme típico de pastor, Abel Ferrara não está tentando ensinar o espectador, dar-lhe uma lição, pois ele confia o suficiente na inteligência dele para deixar sua obra em aberto.


O que Ferrara procura iluminar com o seu filme, a demonstração de fé que o cineasta tem por seu ofício está contida em uma frase proferida por um religioso que concede entrevista no programa televisivo do filme: “a experiência para Jesus é estar aberto às pessoas marginalizadas, aos pecadores, às pessoas consideradas afastadas de Deus, porque Deus está em todas as pessoas, então temos que tratar cada pessoa como se essa experiência fosse com Deus”.

O evangelho proposto por Abel Ferrara é acreditar no cinema como essa arte que, ao invés de olhar com os olhos, olha com o coração, uma arte, enfim, divina, que “leva o homem rumo a Deus” (Michel Mourlet). “Maria” é um desses filmes que se deve responder com os sentimentos, com a emoção. Cinema das tripas coração, das entranhas, cinema não como instrumento de expressão, mas sim de verdadeira revelação.